25 de ago. de 2018

Crítica: Manual de Comunicação LGBTI+

AC: terminologias ultrapassadas; conceitos excludentes/equivocados; apagamento de pessoas intersexo, multi, não-binárias e a-espectrais.



O Manual de Comunicação LGBTI+ é um material que foi disponibilizado em maio para tornar o jornalismo mais inclusivo. O artigo é uma crítica a tudo que o manual falhou ou errou. A intenção não é atacar ou rechaçar, mas a crítica será dura porque esse material tem um alcance importante, foca na comunidade LGBTQIAPN+, e foi produzido por grandes instituições.



Vou copiando uns trechos e fazendo minhas críticas.Vamos lá:

"Este Manual visa apresentar aos meios de comunicação, incluindo jornalistas e estudantes desta área, a terminologia mais atualizada sobre a população lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual e intersexual (LGBTI+)*, trazendo à discussão temas importantes para o debate nacional e internacional sobre seus direitos."

Terminologia mais atualizada, mas nem citam a palavra transgênero e usam intersexual em vez de intersexo. Começaram bem.

No Prefácio são inconstantes com a linguagem: num momento falam "as/os", no outro falam "os". Decidam-se: vão ser excludentes com pessoas não-binárias da forma tradicional ou da forma falsamente inclusiva?

"Para ajudar a encher esse copo com direitos e cidadania é preciso contar com todas/os as/os comunicadoras/es e jornalistas, que têm o compromisso ético de denunciar discriminações excludentes dos direitos assegurados constitucionalmente a todos os cidadãos, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero."

Cadê qualquer menção a sexo ou corporalidade? Diz respeito diretamente ao segmento intersexo, que fizeram questão de adicionar na sigla usada no material todo.

"Você sabia que a cada 25 horas uma pessoa lésbica, gay, bissexual, trans ou intersexo é assassinada no Brasil apenas por sua orientação sexual ou identidade/expressão de gênero?"

Eu já acho esse dado um tanto questionável por alguns motivos. Mas pessoas intersexo estão inclusas? Não era apenas LGBTs? Cadê pesquisas sobre violência diadista?

Bom, sobre os conceitos (não vejo necessidade de transcrever). Sexualidade, grande demais. Gênero, acho que tudo bem. Sexo biológico, só não curto os termos macho e fêmea. Intersexualidade, acho que tudo bem.

"Aliado(a). Pessoas que, independente da orientação sexual ou identidade de gênero, tomam ação para promover os direitos e a inclusão LGBTI+. Elas são comumente conhecidas como Simpatizantes."

"Independente da orientação sexual ou identidade de gênero"? Aliades da comunidade toda são apenas pessoas: perissexo, cis, hétero e alo. E você é aliade de todo grupo que não faz parte (gays e lésbicas são aliades de bi/multi, alos são aliades de a-espectrais, etc). "Simpatizantes"... mas o manual tem terminologia atualizada, né?

"A orientação sexual refere-se à capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas."

Mesmo dizendo "gênero diferente", logo percebe-se que a definição parte de um viés exorsexista e diadista de que só existem dois gêneros e dois sexos.

"Basicamente, há três orientações sexuais preponderantes: pelo mesmo sexo/gênero (homossexualidade), pelo sexo/gênero oposto (heterossexualidade) ou pelos dois sexos/gêneros (bissexualidade). Estudos demonstram que as características da orientação sexual variam de pessoa a pessoa (KINSEY et al., 1948). Assim, as três orientações sexuais preponderantes mencionadas acima não são as únicas."

Tá, preponderantes, mas... já não deveríamos ter passado disso? Dessa tríplice hétero-homo-bi? Agora, definir atração por sexo não tem desculpa. Mas o manual é atualizado, né? E mais: assexualidade existe!

"Assexual. É um indivíduo que não sente nenhuma atração sexual, seja pelo sexo/gênero oposto ou pelo sexo/gênero igual."

Ah, lembraram da existência de assexuais. Mas colocaram uma definição ultrapassada, como se não existisse um espectro na assexualidade. Nem citaram demissexualidade, que há um bom tempo está sendo falada. Sem contar "gênero oposto" e "gênero igual".

Me recuso a transcrever a definição de bissexual. É a mesma coisa desatualizada e exorsexista de sempre...

As definições de gay e lésbica excluem a possibilidade de pessoas não-binárias se identificarem como tais, e da possível atração por outros gêneros, respectivamente, masculinos e femininos. Mas não esperava que soubessem disso.

"Assim, o termo homossexual pode se referir a homossexuais femininas – lésbicas, ou homossexuais masculinos – gays."

Super atualizado usar homossexual como substantivo, hein!

Homoafetivo: termo excludente porque relações do mesmo gênero não existem apenas entre gays e lésbicas bináries. E não há relações entre não-bináries ou bináries com não-bináries, né?

Pessoas gays, hétero, homossexuais, e lésbicas não precisam ter tido relações pelos gêneros que se atraem para se definirem nessas identidades? E quem precisa? Atração é definida por... atração, não relação. Engraçado que não ressaltaram isso sobre bissexuais.

"Significa que as pessoas pansexuais podem desenvolver atração física, amor e desejo sexual por outras pessoas, independente de sua identidade de gênero ou sexo biológico. A pansexualidade é uma orientação que rejeita especificamente a noção de dois gêneros e até de orientação sexual específica."

De novo enfiam sexo biológico na definição. Atração bi também considera mais de dois gêneros. Pansexualidade É uma orientação específica!

Não citaram nem polissexualidade, que direto é falada junto com pan.

E mais uma vez essa supervalorização da atração sexual como se só ela definisse as experiências das pessoas. Nada de atração romântica e, consequentemente, nada de pessoas arromânticas, que estão mais e mais em evidência também.

"Identidade de gênero é a percepção que uma pessoa tem de si como sendo do gênero masculino, feminino ou de alguma combinação dos dois, independente de sexo biológico."

Os três gêneros: homem, mulher, e... misto? Holher? Mumem? Não-binariedade se resume a ser uma mistura de homem e mulher, né? Pelamor, nem pra citarem agênero ou gênero-fluído!

"A expressão de gênero da pessoa nem sempre corresponde ao seu sexo biológico."

Sexo biológico não define identidade de gênero, mas define expressão de gênero???

"Agênero. Pessoa que não se identifica ou não se sente pertencente a nenhum gênero."

Ah, então existe a possibilidade de não ter gênero? Por que não foi dito antes?

"Binarismo de gênero. Ideia de que só existe macho | fêmea, masculino | feminino, homem | mulher, sendo considerada limitante para as pessoas não-binárias."

Bom, a palavra binarismo está sendo usada de forma errada. Ela na verdade foi cunhada para discutir sobre a imposição ocidental binária de gênero contra todas as culturas que aceitavam mais de dois gêneros. É uma discussão racial, inclusive. Só que aqui no Brasil a palavra popularizou. Soltam esse conceito sem nem explicar o que são pessoas não-binárias.

"Cisgênero. Um termo utilizado por alguns para descrever pessoas que não são transgênero (mulheres trans, travestis e homens trans). “Cis-” é um prefixo em latim que significa “no mesmo lado que” e, portanto, é oposto de “trans-” (GLAAD, 2016). Refere-se ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o gênero atribuído ao nascer."

"Alguns". Exclusão de não-bináries. "Em todos os aspectos", quais, além da identidade em si? Isso inclui expressão? Porque se sim, NÃO.

Conceitos de drag queen, drag king e transformista estão excludentes. Pessoas de qualquer gênero podem performar essas artes!

"Gênero fluído (gender-fluid). A pessoa que se identifica tanto com o sexo masculino ou feminino. Sente-se homem em determinados dias e mulher em outros."

Caramba! Mais uma opção fora do binário que não foi citada. E pessoas gênero-fluído só mudam entre os gêneros binários. Aham...

"Transgênero. Terminologia utilizada para descrever pessoas que transitam entre os gêneros. São pessoas cuja identidade de gênero transcende as definições convencionais de sexualidade."

"Pessoas que TRANSITAM entre os gêneros". É tão difícil escrever o contrário da definição de cisgênero??? E mais, definição mais sem sentido.

Bom, transexual é um termo controverso. Mas ainda muito usado no Brasil. Há pessoas n-b que também usam. Podiam ter explicado bem porque há gente que usa transexual, e gente que usa transgênero, né?

A definição de travesti abre brecha para pessoas designadas mulheres se identificarem como travesti. Nunca vi casos assim.

"Queer. Um adjetivo utilizado por algumas pessoas, em especial pessoas mais jovens, cuja orientação sexual não é exclusivamente heterossexual. De modo geral, para as pessoas que se identificam como queer, os termos lésbica, gay, e bissexual são percebidos como rótulos que restringem a amplitude e a vivência da sexualidade. O termo queer também é utilizado por alguns para descrever sua identidade e/ ou expressão de gênero. Quando a letra Q aparece ao final da sigla LGBTI+, geralmente significa queer e, às vezes, questioning (questionamento de gêneros)."

"Em especial pessoas mais jovens": essa identidade existe há décadas. Queer não é rejeição ou ausência de rótulos, pode ser uma outra identidade. E o grupo Questionando não é só sobre gênero, é sobre atração também.

E após todas essas explicações repletas de desinformação, colocam aquela porcaria daquele biscoitinho. E o melhor de tudo é que, além de informações também erradas, muitas contradizem tudo que foi falado anteriormente. A contradição da contradição xD. Alguém se deu ao trabalho de revisar as informações do capítulo e do infográfico?

Me recuso a comentar os conceitos. Quem chegou até aqui nem precisa disso.

"A LGBTIfobia pode ser definida como o medo, a aversão, ou o ódio irracional a todas as pessoas que manifestem orientação sexual ou identidade/expressão de gênero diferente dos padrões heteronormativos, mesmo pessoas que não são LGBTI+, mas são percebidas como tais."

Mais uma vez nenhuma menção a sexo/corporalidade, como se diadismo não existisse. Isso que colocaram o I nessa palavra horrível. Não há só padrões "heteronormativos". E sim, existe opressão maldirecionada, quando pessoas que não são da comunidade são discriminadas por serem lidas como membros dela, mas... botar essas exceções junto me deixou desconfortável - abre brecha pra dizer que hétero pode sofrer homofobia.

"Na maior parte das vezes, os fenômenos da intolerância, do preconceito e da discriminação em relação a gays (homofobia), lésbicas (lesbofobia), bissexuais (bifobia) e travestis e transexuais (transfobia) devem ser tratados não com terapia e antidepressivos, como no caso das demais fobias, mas sim com a punição legal e a educação."

Ah, então nem é doença mental? Então talvez usar sufixo -fobia não seja tão adequado? Por isso que existe a proposta de mudar os sufixos para -misia.

"É importante observar, que além da LGBTIfobia, o fenômeno da Misoginia também se manifesta neste contexto, podendo ser definida como discriminação e violência contra mulheres (cis ou trans) ou pessoas designadas como mulher."

Tá, mas para mulheres trans - que sofrem também com cissexismo - existe o termo transmisoginia. Pessoas designadas como mulher, mas todas elas? Porque se forem não-binárias, estamos falando de exorsexismo.

Bom, colocaram em seguida a definição de fobias, que não condiz com as ações envolvidas em crimes de ódio e discriminações. Decidam-se: os termos com sufixo -fobia são válidos ou não?

"Qual banheiro ou vestiário a pessoa trans deve usar? Se a pessoa se apresenta e se identifica como mulher, deve usar o banheiro/vestiário feminino, se a pessoa se apresenta e se identifica como homem, deve usar o banheiro/vestiário masculino."

Não-bináries não têm banheiro. Que bacana.

"Utiliza-se o artigo definido feminino “A” para falar da travesti (aquela que possui seios, corpo, vestimentas, cabelos e formas femininas)."

Se não tiver seios, corpo, vestimentas, cabelos e formas femininas não pode usar a linguagem a/ela/a, tá? Não tem dinheiro ou condição pra mudar o corpo? Se fodeu.

Nesse mesmo capítulo, sétimo, vem uma série de apagamentos multi e a-espectral nas partes sobre casamento e família, mas cansei de transcrever trechos. E, pelo visto, um casal aquileano ou sáfico onde uma parte é cis e a outra é trans não podem reproduzir. Fizeram questão de conceituar heteronormatividade e heterossexismo, mas não as demais opressões.

No capítulo 8 falam da rejeição ao sangue de homens aquileanos e perpetuam a ideia de que se resumem a gays. E sobre a intersecção PCD e LGBTI+, falaram bem sobre capacitismo, mas curiosamente citaram homofobia, lesbofobia, transfobia, menos bifobia.

Finalmente, capítulo 10. Não colocaram bandeiras lésbicas. Ah, quer dizer que a faixa branca da bandeira trans inclui as tais pessoas não-binárias que ninguém explicou? A faixa amarela da bandeira pan representa só três opções de pessoas não-binárias. Aham...



Engraçado que falaram que queriam mostrar terminologias mais atualizadas, porém temos referências de conceitos que são de 2006, 2007, 2009, e 2010! Me pergunto quantas comunidades foram consultadas por essas digníssimas referências?

Podia ter sido um bom manual. Infelizmente, foi péssimo. Parece que nem tentaram. Muita falta de pesquisa e de diálogo com os segmentos da comunidade. E acho grave vindo de grandes instituições que dizem estar empenhadas com a causa LGBTI+.

Sim, tem partes que prestam, como a parte de leis e direitos, pautas, sobre saúde e HIV, mas do que adianta se conceitos básicos estão contraditórios, excludentes e equivocados? Do que adianta se ainda há terminologia desatualizada e até opressiva? Melhorem!

Para quem ainda quiser o material, pode ler ou baixar aqui. (Boa sorte!)