29 de jul. de 2018

Para que tantos rótulos?

Muita gente adora perguntar atualmente: pra que tantos rótulos? Sejam pessoas LGBTs (sim, só os quatro segmentos), e até pessoas hétero-cis de fora da comunidade.

É comum falarem isso pra qualquer identidade que vá além de LGBT. Como se os quatro segmentos fossem suficientes, como se fossem o resumo da diversidade humana fora do padrão hétero e cis. Passou disso é demais.

Vindo da própria comunidade de pessoas marginalizadas e que lutaram por identidade é preocupante. Uma de nossas bandeiras é a liberdade individual; o direito de se rotular/identificar como quiser está dentro disso.

Afinal, por que existem tantos rótulos? Por que inventaram tantos? E por que continuam inventando?

A resposta mais simples é: existe uma diversidade gigantesca de experiências e vivências, e nem todas elas vão se encaixar em rótulos que já existem, assim como rótulos gerais são insuficientes para descrever certas pessoas.

Toda identidade (desde que não tenha algum viés problemático ou opressivo) deve ser respeitada. Não podemos simplesmente resumir ou recusar identidades para "facilitar", para "que nos levem a sério", entre outros motivos sem sentido que jogam uma responsabilidade nas identidades que nem é delas.

Rótulos mais específicos também ajudam pessoas a adotarem rótulos gerais e se entenderem melhor. Por exemplo, uma pessoa com uma atração fluída entre gêneros binários e alguns não-binários pode encontrar um rótulo mais específico e descobrir que o rótulo bi também serve para ela.

Falando de um sistema que normaliza heterossexualidade, cisgeneridade, expressões de gênero, relacionamentos e corporalidades, criar trocentos rótulos é uma forma prazerosa de desafiar esse sistema. Até porque também adoro identidades. Acho válido seguir esse caminho de que "o ser humano é muito complexo e essa complexidade merece incontáveis termos".

Sobre pessoas sem rótulos ou que rejeitam rótulos, acredito que elas e pessoas que se rotulam possam entrar num acordo, no momento em que estão desafiando esse mesmo sistema. A diferença é que esse grupo prefere lutar por respeito e liberdade sem usar "classificações". Não se rotular também está dentro da liberdade individual e é uma luta válida.

Ninguém está exigindo que também decorem todos os rótulos existentes. Glossários estão aí para isso. Você pode fazer uma listinha e levar no bolso. A questão é: respeite os rótulos, mesmo que não sejam úteis a você.

[Descrição de imagem: 35 bandeiras de orgulho de 
identidades mais populares e menos conhecidas.]



26 de jul. de 2018

Opiniões impopulares...

ALERTA de artigo polêmico



Vou falar aqui umas opiniões impopulares minhas. Estou aberte a discuti-las, pra quem tiver essa paciência e disposição.

Lembrando que opiniões impopulares são controversas porque podem ser mal-interpretadas facilmente ou porque geram discussões amplas com pontos relativos e conflitantes. Ou falam verdades que quase ninguém consegue aceitar.



- Ninguém nasce de uma sexualidade ou de um gênero.

- Gente que nunca se envolveu com as militâncias e não deseja se envolver são acomodadas ou covardes demais pra enfrentar as opressões.

- Empresas que promovem inclusão ou estão investindo na visibilidade LGBT+ não fazem isso por altruísmo, fazem apenas por dinheiro. Sim, incluindo a Disney.

- Espaços exclusivamente gays são os menos politizados e ativistas em comparação aos outros espaços da comunidade, além de serem dominados por grupos majoritários (cis, branco etc) que só reproduzem opressões.

- Os conceitos de empoderar e local de fala foram muito banalizados.

- Bicuriose, hetero-flexível, e homo-flexível são rótulos válidos.

- As pessoas podem se atrair por genitálias ou ter preferências por certas anatomias sexuais.

- Casamento é uma instituição falida, e muitos casais aquileanos e sáficos tentam imitar os casais héteros quando insistem em se casar em igreja (heterossexismo internalizado).

- A grande maioria das pessoas cis não se atrai por pessoas não-binárias devido a exorsexismo internalizado ou por desconhecer pessoas n-b.

- Pessoas magras podem sofrer discriminação pela magreza.

- Se você tem amizade ou contato com gente fascista ou que segue figuras fascistas, você está relevando com o fascismo. E foda-se se é amizade de infância.

- Só vamos destruir o fascismo matando es fascistas.

- Não existem pessoas de centro/centristas.

- Parente não é família.

- Toddy é melhor que Nescau.



21 de jul. de 2018

Em defesa da neolinguagem

Chamada às vezes de linguagem neutra ou mesmo "linguagem não-binária", a neolinguagem é uma proposta que envolve mudanças na estrutura da nossa língua. Não é um tópico exclusivamente não-binário, pois também pode ser do interesse de outras pessoas que queiram uma neutralidade sem o uso do masculino (pode ser o caso de correntes feministas).

Não é recente que pessoas tenham questionado a estruturação da língua, que coloca a qualidade masculina como dominante. Dois homens são eles, duas mulheres são elas, um homem e uma mulher são eles; assim aprendemos desde sempre.

Apesar do questionamento, as pessoas não tiveram a coragem de desafiar o próprio idioma. Não é incomum encontrar tutoriais ou dicas de como se falar da forma mais neutra possível dentro das normas. Acho válido e recomendo muito esse recurso, que utilizo junto com a neolinguagem.

Foi então que começou pelas redes sociais o uso do X que, contudo e apesar de tudo, foi o início de algo. O uso de X não é bem aceito pela falta de uma sonoridade evidente (podem pronunciar como mudo ou e/i) e por não ser lido por dispositivos para pessoas cegas (um problema que seria resolvido se fossem configurados para ler X de algum jeito...).

Com isso surgiram novas propostas, sistemas de neolinguagem criados tanto para neutralizar a língua de uma nova forma, quanto incluir mais pronomes além de ele e ela.

O maior objetivo da língua é a comunicação. Se as pessoas entendem, é isso o que importa. A neolinguagem é compreensível até para quem está tendo o primeiro contato com ela. Então ela segue o principal objetivo de uma língua. 

Línguas estão em constante mudança. Elas podem variar de país em país e de região em região. Elas tendem a mudar. Se o português não se estruturou para incluir um terceiro gênero gramatical, sem associação com algum gênero específico, isso reflete apenas o pensamento exorsexista que predomina na população (o povo é quem faz a língua). Mas isso pode mudar, afinal, como falado, línguas não são imutáveis.

É injusto exigir que todas as pessoas se adaptem apenas a dois pronomes, apenas a dois tipos de linguagem. Uma língua, algo mutável e feito para comunicação, merece mais respeito que uma pessoa? Quem não se encaixa na norma apenas se conforma? Onde já ouvi esse discurso?

E mais, desafiar normas de linguagem nem se compara a desafiar normas sexuais e de gênero. É contraditório pessoas cis e trans binárias da comunidade não darem chance a neolinguagem, mesmo enfrentando opressões que lhes ameaçam a vida e a integridade.

Particularmente também vejo na neolinguagem a oportunidade de enriquecer ainda mais a língua portuguesa. Até o inglês, que é bem menos complexo, aceita há séculos they (eles/elas) como pronome neutro singular, e agora está se abrindo a novos pronomes. Sinceramente, me surpreende que uma língua tão maravilhosa como a nossa não tenha se aberto a isso.

De novo, a neolinguagem é uma proposta. Ninguém está simplesmente exigindo que todes a usem de um dia pro outro. As pessoas podem ainda escolher seguir as normas. Fica na consciência de cada ume.

Acredito que se a proposta fosse amplamente aceita o desafio seria escolher um sistema bem definido. Precisaríamos organizar isso, pois enquanto eu uso mi como neutro, há pessoas que usam minhe, por exemplo. E outro desafio seria a cunhagem de palavras de conjuntos binários bem específicos, como pai e mãe ou dama e rapaz (o que acho mais complicado).

Sim, as pessoas podem (re)aprender. Alguém nasce sabendo um idioma? É a mesma coisa. E seria um processo mais fácil ainda, pois envolve remodelar o que já foi aprendido.

Essa proposta é uma demanda de um grupo oprimido excluído de um sistema binário de gênero. Não custa tentar. Eu uso neolinguagem desde o começo do ano, tanto no mundo virtual quando no mundo material, e posso dizer que é uma proposta viável. As pessoas me entendem. Acredito que se formos aderindo aos poucos, logo a proposta será reconhecida e poderá ser normalizada.

Espero que esse artigo ajude nessa demanda de alguma forma, visto que há pouquíssimo conteúdo nacional sobre neolinguagem. Essa foi minha defesa dessa proposta.



14 de jul. de 2018

Militância ou pink money?

A maior polêmica da semana talvez tenha sido o novo clipe do artista Nego do Borel, onde o mesmo aparece vestido com roupas tradicionalmente femininas e encena um beijo com outro homem. O clipe recebeu muitas críticas e teve recepção negativa tanto da comunidade LGBTQIAPN+ quanto do público geral.

Nem tenho muito que dizer. O clipe não tem contexto, não há representatividade e sim caricaturas e estereótipos, Nego havia dias antes postado foto com um político fascista famoso, e continua mostrando apoio. Até o beijo foi forçado. Enfim, um desserviço.

Não vou ficar promovendo boicote ao clipe, e inclusive defendo o direito das pessoas de o apreciarem. Você pode gostar da obra. Apenas tenha o senso crítico sobre o efeito dela.

Tudo isso reacendeu a grande discussão sobre o famoso pink money. Várias pessoas apontaram e gritaram aos quatro ventos o oportunismo evidente do artista, além de criticar como ele usou a comunidade na produção. Outras figuras também foram adicionadas às discussões.

Tudo isso nos leva a uma questão interessante: pink money é inevitável?

Bom, toda entidade que falar sobre ou mostrar a diversidade vai lucrar com isso, de alguma forma ou de outra. O capitalismo funciona assim, não se pode escapar dele visto que estamos todes inserides nele. E a diversidade esteve chamando muita atenção atualmente, o que consequentemente a tornou alvo desse sistema.

O que realmente importa nessa questão é se essa tal entidade tem um histórico de apoio à comunidade, seja uma declaração pública, postagens nas redes sociais, reversão dos lucros para instituições focadas em ajudar a comunidade, enfim. É aí que sabemos diferenciar o oportunismo do altruísmo. E isso vale tanto para artistas de fora quanto de dentro da comunidade.

Claro que existe um critério diferente para esses dois grupos.

Pessoas de dentro são de alguma forma cobradas de fazer algo pela causa, mas não é incomum que quase toda produção seja vista com bons olhos apenas pela pessoa ser da comunidade. E quando pessoas de fora decidem ser a favor da causa, são cobradas de um ativismo que vai além de sua limitação enquanto artistas e aliadas. Precisamos nos atentar a esses detalhes para assim não darmos brecha à apropriações e não acusar injustamente de apropriações.

Ademais, e detesto admitir isso, mas até mesmo atitudes como a de Nego do Borel trazem alguma visibilidade à comunidade, pois o assunto repercutiu e gerou discussões envolvendo a diversidade e o oportunismo de artistas em relação a ela. É positivo que o tema do pink money seja abordado, então a situação não foi inteiramente ruim. Achei necessário apontar isso.

E como toda história tem vários lados, vamos para um outro: já perceberam a diferença entre as críticas e cobranças feitas às figuras periféricas e às figuras brancas ou marcas? Precisamos nos atentar a isso. Nego do Borel foi muito citado junto com Jojo Toddynho, ambes sendo atacades com uma agressividade que não é igual com outras figuras e que chega a ser um tanto desproporcional aos erros que cometeram.

Classismo, racismo e misoginia ainda existem, e podem muito bem se mesclar com críticas válidas e necessárias. Cuidado. Se policiem. Tenham autocrítica até para falar de quem está errade.



11 de jul. de 2018

O passado condena

Semana passada foi um daqueles episódios onde o karma ataca com tudo. Um youtuber que eu nem conhecia teve postagens racistas do Twitter expostas, e com isso houve uma repercussão negativa chegando a perda de patrocinadories.

Nisso começou uma discussão sobre se expor postagens antigas é justiça ou apenas revanchismo, se é algo necessário ou apenas tática para destruir carreiras.

Sinceramente, eu não sei até que ponto é válido jogar na cara de pessoas postagens antigas, de anos atrás, ainda mais postagens de 2010 para trás. Considero essa década como o marco das discussões sobre opressões perpetuadas sob formas de piadas e opiniões. Então, digamos, tudo que foi dito de oito anos pra trás deve ser considerado? Deve ser esfregado na cara da pessoa no presente? Fica aí o questionamento.

Ninguém da geração de 1990 e antes era uma pessoa crítica na adolescência e no começo da fase adulta. Não estou justificando piadas e opiniões escrotas, apenas apontando que se formos desenterrar toda merda que falamos e fizemos, teremos uma grande maioria da população jogada na fogueira. Isso é algo para se debater.

Voltando ao presente, no caso em específico, achei mais do que justo o que aconteceu. O sujeito em questão fazia piadas opressivas constantemente, não mostrava estar aberto a reconsiderar suas ações, e fez parte de sua carreira em cima das piadas. Além disso, ainda teve a coragem de fazer um vídeo ridículo pedindo desculpas de maneira bem porca, e ainda disse que sues amigues o conscientizaram sobre a violência contra a população negra e o racismo estrutural.

Calma, vamos analisar: a pessoa é uma figura pública, tem notoriedade, está frequentemente ligada às redes sociais, e só agora em julho de 2018 esse bendito ouviu falar na violência e no racismo? É sério isso? Ninguém antes na vida pessoal ou virtual dele havia falado nessas coisas? Sério mesmo que ele nunca viu esses temas sendo abordados? Pra mim tá muito estranho.

Ou a pessoa é alienada a um nível absurdo sobre questões das populações racializadas, ou apenas não se importou o suficiente até sentir no próprio bolso. E eu aposto mais na segunda opção.

Logo em seguida outras pessoas decidiram apagar suas postagens antigas das redes sociais. Algumas se pronunciaram ressaltando o quanto mudaram e que estão melhorando. Ótimo, não fazem mais que a obrigação. Mas apagar as postagens, depois que refleti muito, me pareceu uma atitude bem covarde.

Ficaram com medo das críticas? Depois de terem construído carreira e fama em cima de piadas misóginas, racistas, heterocissexistas, etc? Ora, as pessoas devem sim ser responsáveis pelo que falam, e aguentar um montão de críticas ao passado me parece ainda leve comparado ao que essas piadas causam a longo prazo.

Tudo bem, todes merecem uma chance de redenção. De novo, não fazem mais que a obrigação. Mas não podemos ser punitivistas e achar que pessoas não podem mudar. Se essas figuras realmente melhoraram, ótimo. Que então continuem o que estão fazendo agora, sem ficar tentando se reafirmar toda hora, sem forçar parecer desconstruíde e consciente, enfim.

Essa polêmica levantou muito bem sobre a grande responsabilidade que figuras públicas têm em relação à sociedade. No momento em que esses indivíduos são ouvidos por milhares de pessoas, e crescem em cima de uma ou mais parcelas marginalizadas da mesma sociedade em que vivem, isso cria um fardo. E esse fardo pesou quando essas parcelas decidiram reagir, quando também foram ouvidas.

Ninguém foi avisade de que um passado de piadas opressivas pesaria. Ninguém estava pronte. Não acho que existem culpades, porém as consequências estão aí. Que isso fiquei de lição para todes, sem exceção, afinal esse peso não é exclusividade de figuras públicas.



9 de jul. de 2018

Problematizar demais?

Já ouviram alguém dizer pra outra pessoa que ela "problematiza demais"? Já te disseram que você "problematiza demais"? Já disse que alguém "problematiza demais"?

Se tem uma coisa que aprendi por experiência é que não existe isso de "problematizar demais".

Nunca vi uma problematização que era demais. O que vi até hoje foram problematizações que ou não tinham coerência em suas ideias, ou que partiram de um ponto errado por equívoco ou falta de informação da própria pessoa.

Muita gente fala que certas problematizações são demais, mas curiosamente nunca souberam explicar precisamente onde está o exagero. Explicar isso poderia muito bem gerar debates produtivos principalmente no caso das problematizações incoerentes.

Vivemos num mundo repleto de opressões tão estruturadas, enraizadas por todo lado, além de termos todas essas opressões internalizadas, e a socialização nos molda para sermos tanto opressories quanto oprimides, e enxergar uma naturalidade em ambas as posições.

Considerando tudo isso, com qual propriedade podemos afirmar que uma problematização é exagerada, ainda mais quando ela se refere a um grupo oprimido que nem fazemos parte?

Se uma pessoa sente necessidade em problematizar algo, ela deve ter algum motivo. Se ela percebe algo de errado e investe tempo e esforço para analisar e explicar porque algo está errado, isso deve ser respeitado. E as pessoas não gastam energia à toa com um assunto muito ignorado, nem falando algo que uma maioria pode facilmente invalidar.

O mínimo que podemos fazer é tentar compreender a ideia. Não entendeu? Pergunte. Continua sem te fazer sentido? Pense no que levou aquela pessoa a ter essa ideia.

Essa história de "problematizar demais" já foi muito usada para deslegitimar ideias que realmente apontavam uma ou mais opressões, vinda principalmente de pessoas que nem eram alvos dessas mesmas opressões (coincidência, né?). Por isso deve-se tomar cuidado com essa frase.

Você tem todo direito de achar que uma problematização não faz sentido ou não te acrescenta em nada. Agora, se achou demais e expressou essa opinião, ao menos tenha a decência de explicar. Você pode esclarecer alguém ou mesmo ser esclarecide.

E sobre pessoas que constantemente soltam essa pérola e não mostram abertura para discussão, recomendo distância. Quem não se esforça para entender não merece atenção.



7 de jul. de 2018

Copa

Pois é, hoje dedico um artigo para falar de uma coisa que não gosto e nem acompanho: a Copa.

Nunca falei disso e nem fiz questão porque além de não ser fã de futebol, quando criei o blog a Copa daquele ano já havia passado. Decidi comentar sobre essa. Não especificamente sobre a Copa, mas sobre discussões que me chamaram a atenção.

Talvez eu já tenha falado isso aqui, mas o povo brasileiro é muito movido a pão e circo mesmo, além de ser muito alienado e acomodado. A Copa faz parte do circo sim, não adianta tentar desmentir. É tão circo que não apenas libera muites trabalhadories do serviço como também faz o povo entrar num espírito festivo e patriota sem um real propósito.

Pessoas se reúnem em suas casas ou em bares (e nesse caso lotam a calçada e até a rua, o que incomoda muito), torcem pela nossa seleção e/ou outras, gritam, xingam, comemoram, ficam hipnotizadas nos jogos. Não vou negar que de certo modo é muito boa essa união do povo. Seria melhor ainda se ela fosse... constante.

Vou esclarecer uma coisa antes que me acusem: não gostar da Copa e não acompanhá-la não torna ninguém mais politizade, inteligente, crítique, nem menos alienade ou acomodade. Pessoas politizadas, inteligentes e críticas podem e têm todo direito de curtir essa época. Todes têm, na verdade. Assim como tem gente com a TV desligada falando muita besteira.

Porém quero propor aqui uma análise de toda essa festa e todo esse patriotismo aparente. As pessoas podem sim comemorar as vitórias nos jogos, afinal jogos são competições e elas são feitas pra isso. Mas o que exatamente estamos comemorando quando nossa seleção faz um gol ou ganha uma partida?

E o patriotismo... Bem, já adianto, não sou patriota e o conceito de patriotismo não me faz sentido algum. Mas nada impede alguém de amar seu próprio país. E agora pergunto: onde está o tal do amor pelo país nos outros dias do ano? Amam mesmo o país ou apenas a seleção?

O país está uma bosta sim e não estou acusando a Copa. Estou apenas questionando todo esse empenho que milhares de pessoas fazem por competições que não vão beneficiá-las em nada, mas esse empenho não aparece ou aparece muito pouco quando é algo para melhorar o país.

O maior problema aqui é toda essa atenção e importância dada à Copa, e quando ela acaba, bom, nada muda. O povo retorna a sua rotina opressiva e insatisfatória, continuam na zona de conforto frente a todos os absurdos que ocorrem quase todo dia, votam em figuras corruptas e incompetentes, e fica por isso mesmo. Cadê o patriotismo?

E só mais um esclarecimento antes que me acusem: não, não estou dizendo que essas milhares de pessoas deveriam estar nas ruas protestando. Deveriam não, poderiam, mas protestar na rua não é a única forma de se exigir melhoras e nem de se revoltar. Eu só pergunto onde está toda essa união, todo esse sentimento de confraternização nos outros dias do ano. Só.

Podem curtir a Copa à vontade. Mas não finjam amar a pátria e não percam o senso crítico. E não se esqueçam: a época de eleições está chegando.



4 de jul. de 2018

Família normativa

Vou começar o artigo com um termo criado por mim:

Famunormatividade. Ela é toda construção social, cultural e histórica sobre o conceito de família. Decidi criar esse termo porque não encontrei até então um termo que representasse especificamente esse tópico.

Essa normatividade tem uma forte conexão com a heteronormatividade. O sistema privilegia e valida apenas casais de homem e mulher hétero-cis. E também dita como essas relações devem ser. Por isso o sistema tem a expectativa de que esses casais se reproduzam e tenham uma prole. Esse conjunto é definido como família no "sentido biológico".

Embora atualmente muitos países aceitem mais modelos familiares, parcelas conservadoras e reacionárias continuam se mobilizando contra esses outros modelos, agarrando-se ao pensamento de que a linhagem sanguínea é o que determina uma família verdadeira.

E mesmo que haja a inclusão de homens e mulheres solteires com filhes ou de crianças adotadas, ainda existe toda uma construção sistêmica em cima do que é família e de como as pessoas devem se relacionar com ela. E essa construção é o que decidi chamar de famunormatividade. 

A famunormatividade é que prega que a família é sagrada, que sues parentes serão sempre parentes, que devemos todes amar a família incondicionalmente, que devemos gratidão e respeito a ela mesmo quando não temos motivos para isso, entre outras ideias que, atualmente, estão sendo cada vez mais criticadas.

Estamos percebendo afinal o quanto família, falando sistematicamente, é uma enorme relação abusiva e imposta toda romantizada. E quando a famunormatividade é internalizada, a pessoa se vê obrigada a se prender à gente nociva, e ainda sentir culpa quando não consegue amar ou quer se livrar dessas pessoas.

Por isso que:

- Mulheres não se separam de maridos agressivos porque isso “romperia” a família. Então a manutenção do conjunto familiar é mais valorizada do que a vida dessas mulheres.
- Filhes são obrigades a conviver numa casa com parentes intolerantes e suas reações naturais são tratadas como rebeldia sem causa e ingratidão.
- E mesmo quando filhes são expulses de casa, há gente que tenta justificar essa atitude, como se crianças e adolescentes não tivessem direito à cidadania.
- Pessoas são obrigadas a suportar parentes intolerantes em reuniões e encontros casuais de família, unicamente para manter a paz no ambiente, mesmo que esse ambiente seja suas próprias casas.

E tem outras situações diversas. Mas acredito que já ficou claro até aqui o que é a famunormatividade e seus efeitos negativos.

Não tem como não se lembrar da comunidade LGBTQIAPN+ dentro desse tópico. Porque muites, até desde a infância, acabam se encontrando preses numa casa com gente preconceituosa que praticam constantemente (senão diariamente) violência física e/ou mental através de punições antiquadas, pressões de comportamento, cobranças que não consideram os limites ou o estado momentâneo da pessoa, chantagens emocionais, entre outras atitudes que ferem as liberdades e integridades da pessoa.

Pior ainda quando a situação envolve famílias religiosas. Crianças e adolescentes são privades de liberdade, passam frequentemente por tentativas de doutrinação para que “mudem”, e é muito comum que sejam expulses de suas casas. E ainda haverá pessoas para culpabilizá-las. Claro que esse rompimento familiar não é previsto pela famunormatividade, mas dentro da heteronormatividade e do ódio pregado pelas religiões, o ato é justificável.

Apesar de a famunormatividade ter sido feita para as "famílias biológicas", ainda é possível que ela se manifeste em algum nível em famílias fora dos moldes hétero-cis, principalmente homoafetivas. Porém isso é mais incomum devido às vivências de quem compõe essas famílias.

Quanto mais esse sistema for questionado e quebrado, mais pessoas poderão se libertar de "famílias" tóxicas e mais famílias formadas através de vínculos verdadeiros que independem de sangue ou filiação poderão existir. Isso não vale apenas para a comunidade, vale para todes.