29 de nov. de 2018

Razões de adotar uma identidade

AC: reducionismo identitário, intolerância contra identidades.



Com o avanço das discussões sobre a diversidade veio uma erupção de identidades. Não apenas as identidades LGBTQ, mas também outras além da sigla mais reconhecida (intersexo, assexual, pan etc), e muitas outras que já foram cunhadas e ficam na obscuridade dos espaços virtuais mais isolados. E com certeza ainda há identidades sendo cunhadas ainda, talvez nesse exato minuto. Sem contar outras identidades que podem existir por aí, exclusivas de um país, de uma comunidade, ou de um grupo fechado, e que não são divulgadas.

O que costuma criar uma identidade são demandas e a necessidade de descrever experiências ou características em comum de um grupo. E pessoas adotam identidades para ter um senso de pertencimento (ser de um lugar, parte de um grupo), assim como dar um sentido para suas vivências. Quando falamos de identidades de pessoas marginalizadas, temos também o lado sociopolítico. É o caso das identidades da comunidade LGBTQIAPN+.

Mulheres que se atraem apenas por mulheres vão se sentir contempladas pela identidade lésbica. Pessoas com atração por homens e mulheres vão se reconhecer na identidade bi. Todes que não se identificam com o gênero imposto pelo meio vão se encontrar entre pessoas com a identidade trans. Enfim. Esse é o ponto central para se adotar identidades.

Entretanto, não é a única razão para isso. Existem outras razões, pessoais ou não, positivas ou negativas, para se adotar ou se apresentar para outres com determinada(s) identidade(s). 

Pessoas podem adotar identidades mais gerais por serem mais conhecidas, e assim ser melhor entendidas e/ou acessar melhor comunidades com pessoas com a mesma identidade ou pelo menos as mesmas experiências.

Pessoas podem adotar identidades mais gerais com receio de serem rejeitadas ou agredidas devido a atitudes antagônicas frequentes contra identidades mais específicas. Identidades multi, a-espectrais, ou não-binárias são alvos constantes disso. Pessoas podem se apresentar como bi para evitar discursos contra pan, por exemplo, mesmo que atração pan esteja mais em pauta atualmente. Imaginem outras identidades multi menos conhecidas?

E precisamos muito falar nisso, pois é realmente opressivo ter que esconder uma identidade para evitar essas situações, ainda mais se aquela identidade é aquela que te descreve plenamente. Precisamos começar a romper com ataques contra identidades menos conhecidas, seja por intolerância ao segmento todo ou apenas reducionismo.

Pessoas podem adotar identidades que as contemplem no momento. Mas quando passam por uma fase de descoberta podem mudá-la. Pessoas que antes se consideravam gay/lésbica e hétero podem depois se descobrir multi e adotar uma identidade multi.

Falar na possibilidade de mudar de identidade como algo válido e pessoal também é importante, pois é algo também taxado negativamente como confusão ou necessidade de aparecer.

E mesmo pessoas numa identidade contemplativa, mas que após descobrirem-se mais podem achar outras mais úteis ou relevantes, podem permanecer na mesma identidade quando há poucas pessoas a usando, para assim manter um número desse segmento. Pode ser o caso de uma pessoa que sabia ter uma atração múltipla, escolheu poli, depois percebeu ter atração por todos os gêneros, e em vez de mudar para pan ou oni, permanece usando poli, por ser uma comunidade muito pequena no Brasil.

Lembrando também que falo de identidades que não reproduzam opressões ou ideias problemáticas, como no caso de g0y. Porém não creio que mesmo nesses casos rechaçar ou impedir pessoas de adotarem seja um método tão viável. Analisar a identidade e apontar o que há de ruim e argumentar é um caminho mais pacífico.

Enfim, identidades precisam ser respeitadas. A ausência delas também, claro. Mas dou ênfase principalmente nas identidades fora do popular. Antes de ficarmos divulgando e empurrando palavras, acredito que precisamos contar a história das identidades LGBTQIAPN+, para que as pessoas entendam a importância que uma identidade pode ter, seja pra elas ou para outras mesmo.

E se precisar catalogar um milhão de nomes para todas as experiências humanas, que seja um milhão! O ser humano sempre foi complexo demais para ser colocado e trancafiado nas caixinhas normativas perissexo/cisgênero/heterossexual.



24 de nov. de 2018

O politicamente correto estragou tudo?

Faz pouquíssimo tempo que eu ouvi uma pessoa conhecida dizer isso. Não, não foi reaça, não foi pessoa ignorante e alienada, não foi a típica pessoa privilegiada que chora porque agora não pode ser mais preconceituosa.

Essa pessoa defendeu que o "politicamente correto" deixou as pessoas com medo de falar, o que as deixou com raiva e repulsa das minorias, assim afastando-as de possíveis debates produtivos e fazendo-as caminhar pra oposição a essas populações.

Entendi muito bem o que a pessoa apontou. Refleti muito e posso dizer com toda sinceridade que continuo acreditando que o "politicamente correto" não estragou nada. Eu vejo toda essa questão por outro lado.

Foi de extrema importância sim dar voz às minorias e permitir que apontassem o preconceito que impregnava diverses piadas e discursos. Nada disso foi apenas uma questão pessoal, foi também uma forma de barrar a continuidade das opressões. Questionar e apontar ideias que diminuem, rebaixam, desumanizam é o primeiro passo para acabar com elas.

O que chamam de politicamente correto, a meu ver, foi o efeito desse primeiro passo. Não foi ruim e continuarei defendendo. Acredito que o que faltou de verdade foi saber explicar as razões de tais piadas e discursos serem opressives, e deixar as pessoas expressarem suas dúvidas da maneira que conseguem, mesmo que usando palavras erradas ou reproduzindo ideias equivocadas.

Grupos marginalizados não têm poder pra oprimir pessoas mesmo quando rechaçam ou repreendem. Porém, mesmo assim, pessoas devem ter ficado com medo de falar coisas relacionadas a esses grupos por nunca estarem cientes se estão ou não discriminando. De que adianta falar tanto em desconstrução se as pessoas não conseguem chegar a ela devido ao medo?

Acho que nosso maior pecado foi o método, não a intenção. E não falo somente no âmbito de piadas num programa ou de discursos em geral. Falo no âmbito social mesmo.

Por um lado entendo o quanto é estressante para muita gente dos grupos marginalizados lerem/ouvirem besteira, terem que explicar tudo, precisarem repetir o mesmo para várias pessoas. Isso deveria ser levado muito em consideração. Por outro lado caímos naquele beco sem saída de que: nós temos a vivência, as pessoas não têm isso e nem informação, e ainda somos a melhor fonte de informação pra elas.

Deixo aqui como reflexão para todes: até que ponto precisamos deixar as pessoas falarem como quiserem, e assim aproveitar para instruir e desconstruir, e até que ponto não devemos aguentar certes perguntas e discursos que podem ser intolerantes e desencadear estresse e gatilhos? Há muito que se pensar e ser revisto.



19 de nov. de 2018

Resistência

AC: violência, política, eleições.



Falamos que seríamos resistência. Muites não entenderam, riram, caçoaram, ou acharam exagero. Quem se enquadra nisso, ou é pessoa privilegiada ou muito alienada. Quem faz parte das minorias sociais e está ciente da realidade sabe o que é essa resistência.

No momento em que o país elegeu um presidente que cresceu com base em polêmicas, discursos de ódio contra minorias e grandes mentiras como um "kit gay" em escolas, nos deparamos com a realidade que muites de nós não quisermos enxergar: nosso país continua violento e preconceituoso, minorias sociais são alvo do sistema, e os poucos direitos conquistados sempre estiveram ameaçados.

Nossa resistência é justamente contra isso. Contra os direitos que estão ameaçados. Contra possíveis retrocessos que estão sendo previstos todo dia com as atitudes contraditórias do novo presidente. Contra a violência intensificada contra as minorias que veio ocorrendo desde o primeiro turno das eleições.

Viver num governo que nos odeia e não está com a gente exige que sejamos resistência.
Existir numa sociedade que nos segrega e nos mata exige que sejamos resistência. 
Tivemos motivos de sobra para ter medo e respondemos a isso sendo resistência.
O cenário político-social atual nos mostrou a realidade e que precisamos ser resistência.

Somos e seremos resistência até o fim de nossas vidas. Não apenas nesses quatro anos. E nem mesmo se fosse eleita uma pessoa mais progressista. Sempre fomos alvos de discriminação e será preciso muita luta para derrubar os sistemas opressivos. O que vamos enfrentar agora é um período de crise, uma grande onda contra nós.

Por isso necessitamos tanto de união e politização. Por isso necessitamos mais do que nunca sair das bolhas, lutar como pode, nos movimentar, e dialogar com a sociedade. Isso tudo faz parte de nossa resistência. Não estamos colocando todo mundo que não é minoria como inimigo, mesmo que existam sim muites inimigues contra nós.

Em compensação elegemos muita gente progressista. Temos apoio de grupos internacionais. E, matematicamente, somos uma maioria que não quis eleger aquele sujeito. Nós podemos. Não estamos sozinhes e sem qualquer apoio além de nós mesmes. Não digo para relaxarmos. Apenas pra ressaltar que somos muites resistindo. Sigo sendo resistência.



14 de nov. de 2018

Binarismo: raça e gênero

AC: exorsexismo, racismo, colonização, violência.



O termo binarismo (de gênero) esteve sendo muito usado por aí ultimamente. Não é difícil encontrar sites, páginas e grupos definindo o binarismo como a imposição de dois gêneros, mulher e homem. É compreensível esse uso do termo por ele ser intuitivo, binário + ismo. Porém, esse termo já esteve sendo usado há muito tempo na anglosfera e num contexto mais específico.

Na anglosfera, binarismo é um tipo de opressão de gênero e racial. É um termo específico para a imposição binária de gênero que culturas "não-ocidentais" (indígenas/nativas/originárias da América, África e Ásia) sofreram com os processos de colonizações eurocêntricos.

Exatamente por isso que eu prefiro o termo exorsexismo para falar da opressão contra a não-binariedade de forma geral. Prefiro naturalizar o uso desse termo e deixar binarismo para uma questão racial que também é muito importante em discussões históricas sobre gênero. O uso desse termo por pessoas brancas tem o mesmo peso de uma apropriação cultural.

Nossas visões atuais de gênero estão construídas em cima de uma forte base ocidental. A mesma base trazida e imposta pelas colonizações. Os povos atacados pelas colonizações tinham mais de dois gêneros e todos faziam parte de sua própria cultura, assim como ritos, festas e tradições.

Pode parecer absurdo, mas negar a existência de mais gêneros além de mulher e homem é também uma atitude racista, pois está reforçando toda a ideia exorsexista que as colonizações trouxeram. A mesma ideia eurocêntrica que destruiu essas culturas, apagou seus costumes e histórias, e perseguiu e matou pessoas que estavam fora da concepção ocidental de gênero.

Binarismo foi cunhado para falar especificamente de pessoas racializadas. Por isso defendo que seja melhor deixar esse termo para esse tópico em particular. E, além disso, precisamos incluir mais discussões sobre binarismo nos estudos de gênero.

Falar na possibilidade de mais de dois gêneros é importante por si só. Mas falar sobre culturas com mais de dois gêneros e do quanto a construção binária atual é branca e eurocêntrica é essencial para revermos nossos conceitos de gênero. Não podemos separar raça de gênero.

(Bandeira de pessoas queer racializadas)



10 de nov. de 2018

Série: Super Drags


Desde o anúncio de sua produção a série causou polêmica com setores conservadores. E também gerou repercussão e euforia por ser nacional e protagonizada por drag queens. Produção original da Netflix, a série tem uma temática adulta e focada na realidade LGBT+.

A história gira em torno de Patrick, Ralph e Donizete, três homens gays que trabalham numa loja, e que se tornam, respectivamente, as heroínas Lemon, Safira e Scarlet - três drag queens. Juntas elas enfrentam uma vilã chamada Elza. A produção da série tem uma boa qualidade. Todes personagens tiveram uma boa dublagem, contando inclusive com as vozes de Pabllo Vittar e Silvetty Montilla. O enredo faz muitas referências a memes nacionais e elementos de mídias internacionais, criando uma fórmula divertida e até nostálgica.

Falando em aspectos positivos e negativos, tenho mais críticas do que elogios sobre o enredo. O desenho tem um humor muito sexualizado que nem é inesperado. Não vou criticar, mas fica de alerta para quem não gosta desse tipo de humor. Há umas coisas problemáticas, tais como: uma cena onde uma das protagonistas apalpa a genitália de um homem inconsciente, estereótipos raciais, e muito falocentrismo. Na verdade nada disso é surpreendente considerando que o enredo foi feito sob uma ótica gay cis de massa; logo, não é uma obra desconstruída.

Por outro lado, a série abordou sobre preconceito (homomisia) e seus impactos, autoaceitação, e o poder da religião em reforçar a discriminação; e fez isso de forma paródica e sucinta, até por ser descontraída e ter cinco episódios até o momento. Apesar das coisas problemáticas, reconheço a importância dela enquanto uma produção brasileira com representatividade drag queen. Há coisas para melhorar sim. E isso deve ser apontado. Mas acredito que o correto é defendermos a continuidade da série, apoiar sua produção. Com isso - e pela surpresa que tive no final do último episódio - aguardo a segunda temporada.



7 de nov. de 2018

Eu avisei mesmo?

AC: política, eleições, fascismo.



Não havia passado nem uma semana após o resultado horrível das eleições desse ano e já havia pessoas arrependidas pelo voto. Arrependidas de terem votado no fascista que venceu a eleição com mentiras, fake news, polêmicas, discursos de ódio, e sem nem ir aos debates do segundo turno.

Em resposta logo se iniciou uma espécie de movimento, "Eu Avisei". Fiquei aqui, apesar do meu medo e meu temor pelo futuro, contemplando e rindo mentalmente (porque não estive conseguindo rir de verdade) das muitas postagens de pessoas decepcionadas com as atitudes recentes do presidente.

Mas depois comecei a refletir. E também vi outras perspectivas sobre o assunto. Segui minha conduta de estar sempre pensando racionalmente, mesmo diante de uma catástrofe alarmante, e comecei a rever sobre o que levou ao resultado da eleição. Foi então que percebi que o movimento "Eu Avisei" não ajuda muito a melhorar a situação atual.

Antes de tudo, podemos realmente afirmar que avisamos? Avisamos mesmo? Vamos nos questionar até que ponto nossos avisos chegaram mesmo, ou até que ponto chegaram e foram ignorados. Porque se é possível acreditarem que um candidato iria permitir mamadeiras com bico em forma de pênis, é muito possível que até os avisos do mundo todo tenham sido desacreditados.

E outra, avisamos de verdade? Ou só ficamos bloqueando as pessoas, rotulando todas como fascistas, e entrando em discussões sem rumo? Encarem isso de forma construtiva. Ah, e não estou falando da parte do eleitorado que é realmente fascista, tá?

É duro até para mim admitir isso, mas essas pessoas decepcionadas comprovam que uma parte significativa do eleitorado do fascista não era gente fascista, era gente ignorante, alienada, com medo, e querendo um país melhor. Essas pessoas devem estar muito frustradas. E mesmo que tenham me jogado no abismo junto com elas, não acho nem útil ou empático só apontar o dedo pra elas e rir delas ou xingá-las.

Além disso, como posso rir das pessoas estarem na merda sendo que eu estou na mesma merda? Ainda mais eu que faço parte de grupos mais vulneráveis. E com certeza há muitas outras pessoas tão vulneráveis quanto eu ou até mais no meio dessa porção desiludida.

Temos uma enorme rede de fatores que levaram ao resultado da eleição. E essa rede não começou esse ano, começou muito antes, bem antes; meu palpite é no ano de 2014. Muita gente tem culpa nisso. E eu ouso dizer que a própria "esquerda" tem muito mais culpa do que o tiozinho analfabeto que só assiste TV e se informa pelo Whatsapp da família. Ainda escreverei mais sobre isso.

Concluindo, todes têm o direito de estar com medo e com raiva, e eu entendo que podemos sentir o impulso de culpar a outra parte mesmo quando ela está visivelmente arrependida. Mas peço que reflitam sobre tudo isso que falei. E, sinceramente, agora prefiro focar minha energia em ser resistência e de trabalhar para que um resultado como esse nunca mais se repita. E só vamos conseguir isso construindo pontes. Isso vai exigir acolhimento, não apontar dedos.