AC: mononormatividade.
Já faz um tempo que essa série foi lançada na Netflix. Peguei uns dias para vê-la. A trama foca numa empresa que cria uma tecnologia capaz de encontrar a "alma gêmea" das pessoas através de implantes que conectam dois indivíduos extrassensorialmente. A série francesa tem um ambiente futurista que joga com os possíveis conflitos entre a tecnologia avançada com a complexidade humana.
Farei uma análise com minhas impressões e perspectivas dos tópicos relevantes da história. E, claro, aqui comentarei sobre muitos fatos importantes ocorridos ao longo da trama. Esteja ciente disso se ainda não viu a série.
A tecnologia Osmosis, que promete encontrar o amor ideal para as pessoas, começa partindo de uma estrutura social antiga mas ainda vigente: a monogamia. Parece não existir qualquer possibilidade de que alguém possa ter mais de ume parceire "ideal" ao mesmo tempo. Não estou dizendo que a série prega isso. É o mundo em que se passa que ainda perpetua isso.
Apesar dessa fantasia de longa data apresentada na série sobre todes terem apenas ume parceire ideal, ironicamente, temos na empresa de Osmosis duas personagens que expressam constantemente solidão: Esther, uma das criadoras do projeto, e Billie, uma funcionária não-binária que acompanha os testes que precedem o lançamento oficial dos implantes Osmosis.
De fato, Esther não apenas escolhe não ser implantada como também vive de relações casuais através de um aparelho de simulação virtual (que, inclusive, é usado por muitas outras pessoas). Lá, ela pode escolher entre vários rapazes; colocando-a assim numa posição antagônica à proposta de seu próprio projeto.
Por causa de uma subtrama envolvendo Esther, três personagens acabam tendo ênfase maior em suas próprias tramas enquanto testadories beta dos implantes: Niels, Lucas e Ana. E acho interessante notar os resultados diversos de cada ume:
- Niels encontrou seu amor, uma jovem chamada Claire. Acabou afastando-a por causa de um incidente influenciado por ações de Esther. No fim, Claire o perdoa e ambes fogem, terminando juntes e sem os implantes ativados. Essa relação, inclusive, ajudou Niels a melhorar de seu vício por conteúdo pornográfico.
- Lucas pensou ter encontrado seu parceiro ideal, que veio a ser seu próprio ex-namorado, Léopold, que o traiu no passado. Largou o namorado atual e decidiu voltar com o ex. Houve um conflito emocional por Léopold querer relações casuais fora da relação a dois. O homem acaba morrendo num incidente, e Lucas considera que Osmosis pode ter falhado.
Acredito que aqui posso propor a reflexão: uma tecnologia tão focada numa estrutura monogâmica não entraria em choque com pessoas de tendências não-monogâmicas? Lucas não parecia aberto a essa possibilidade, o que é direito dele. Mas aqui me pergunto o quanto Osmosis pode não ter estimulado mais o ciúmes.
- Ana encontrou seu amor. Como tem baixa autoestima, ela duvida disso. O fato de estar numa missão de espionar a Osmosis aumenta o conflito entre investir em Simon ou seguir com a missão de sabotagem dada por uma empresa rival.
E aproveitando o momento, a empresa rival, Perfect Match, tem um projeto similar, mas que se aproxima mais dos aplicativos de relação. A equipe critica a Osmosis justamente pelo uso de implantes, considerando-os invasivos e uma transgressão à naturalidade que deveria haver nas relações afetivas. Uma visão crítica pertinente.
Pegando esse gancho, quando a personagem Joséphine decide fugir de Paul (o outro criador do projeto) por ter se sentido presa me fez lembrar muito da premissa de Black Mirror, que é mostrar que a tecnologia pode piorar o que tem de falho e instável na sociedade. Osmosis uniu ambes. E então temos um dos grandes riscos desse recurso: as partes envolvidas se mesclarem tanto a ponto de perderem a liberdade dentro da individualidade. A tecnologia uniu, mas aumentou a possessividade de Paul sobre a moça, o que quase fez as "almas gêmeas" romperem definitivamente.
Tudo isso mostra possíveis resultados de uma tecnologia com tal proposta. Entre as linhas traçadas pelo natural e pelo artificial podemos ter resultados bons, relativos ou ruins. Vivemos num mundo onde a monogamia é sistematicamente imposta na grande maioria dos países. E, junto com ela, temos muitos comportamentos nocivos apoiados por construções sociais e até pela medicina e lei. Uma tecnologia como Osmosis não poderia piorar a situação? Da sua maneira, a série aponta que sim.
É falado numa cena que Osmosis não é algo perfeito. Claro que toda tecnologia tem sua margem de erro. E o projeto não deve acreditar que exista apenas ume parceire ideal para todo mundo. Mas as pessoas estão cientes disso? E se sue parceire ideal morre, como no caso de Lucas? Se é possível encontrar outre parceire ideal, então ao menos a fantasia do "amor ideal" não dita que há somente um único e verdadeiro amor no mundo. Não abre portas para relações poliafetivas, mas posso afirmar que faz uma leve ameaça à monogamia sistêmica.
Por fim, temos Esther e Martin, o robô que está sempre a auxiliando. Martin se revela apaixonado por ela. Após tanto tempo convivendo com ela, aprendendo e existindo por ela, o robô cria sentimentos afetivos. Esther fica descrente a princípio, pois acha que amor é um sentimento humano. Para garantir a segurança des testadories beta, ela se implanta com Osmosis e aceita ficar num mundo virtual com Martin. Ao ser infectado por um vírus (a sabotagem de Perfect Match), Martin faz um último sacrifício por Esther, morrendo para que ela e es testadories vivam. Esther, que até então não achava que poderia ser amada, encontrou algum amor na máquina que ela criou. Isso pode abrir discussões interessantes sobre inteligência artificial e se amor pode ser produzido.
Com tudo isso, devo dizer que gostei bastante da história e recomendo essa série. Pode ser uma boa fonte de estudo sobre o que é o amor e o que constrói as relações, e até que ponto a tecnologia pode (ou deveria) interferir nessas questões. Não é uma série sobre amor. É sobre relacionamentos.