7 de abr. de 2019

A favor dos xenogêneros

AC: exorsexismo interno, policiamento de identidades, trolls, invalidação de experiências, capacitismo e racismo.



Já faz muito tempo que rola por aí prints da lista de identidades de gênero do site Orientando, que ficou um tanto famoso de uma maneira negativa por conter nessa lista gêneros considerados esquisitos demais ou fabricações de trolls e grupos exorsexistas. Aqui está a lista, caso se interessem: https://orientando.org/listas/lista-de-generos/.

Antes de começar a discussão, eu vou fazer uma breve defesa ao Orientando e falar sobre o conceito de xenogêneros.

Para quem ainda tiver dúvida ou certeza de que o Orientando é um site troll, afirmo aqui e agora: não é! Conheço a administração e faço parte da equipe do site. E acho impossível trolls terem todo o trabalho de fazer um site que é pago pra ser mantido, escrever muitas longas páginas com referências e fontes, ter conteúdo coerente sobre os segmentos "mais comuns" da comunidade LGBTQIAPN+, e ter tanta proteção contra ataques e discursos de ódio.

Agora, o conceito. Os xenogêneros são basicamente identidades fora de concepções comuns usadas para definir gêneros. Costuma-se definir gêneros pela presença ou ausência de qualidades subjetivas: masculina, feminina, andrógina, neutra, etc. Já falei sobre isso aqui.

Para mais informações sobre xenogêneros, clique aqui.

Essa é a primeira vez que abordarei com profundidade sobre xenogêneros.

Antes de tudo, vou dizer que acho até compreensível rejeições ou descrença às identidades xeno vindo de pessoas leigas ou pessoas que tiveram apenas contato com identidades dentro das concepções comuns. Por isso acho necessário um trabalho de base sobre isso. E estou disposte a tentar. Esse artigo é uma tentativa.

Identidades cunhadas por pessoas anônimas e com pouquíssimas fontes podem ser mais difíceis de defender. Porém, não acho que isso deveria ser um problema. Identidades xeno serão criticadas de qualquer forma apenas por serem o que são. Muitas pessoas não-binárias as criticam e, fazendo coro com muitas pessoas binárias, afirmam que elas são um desserviço, que atrapalham a luta n-b, que mancham a comunidade LGBTQIAPN+, etc.

Ora, mas já existe um grande sistema que impõe apenas dois gêneros, e desde sempre a comunidade n-b sofre ataques pelo simples fato de serem pessoas fora do binário de gênero. Culpar identidades xeno por algo que já existia não me parece honesto. A oposição sempre irá procurar motivos para atacar. Então, sinceramente, acho que deveríamos ligar o foda-se e falar mesmo de xenogêneros sem medo ou receio.

Não entendo que ameaça identidades xeno causam ao segmento não-binário, à comunidade LGBTQIAPN+, ou a qualquer pessoa. Todas as ameaças possíveis já existem a todes fora do padrão perissexo-cis-hétero. E pessoas xeno são inofensivas demais num mundo que não reconhece nem gêneros dentro de concepções comuns.

Se estamos mais preocupades com a impressão que causaremos, então isso mostra que estamos mais tentando agradar ae inimigue do que romper de verdade com barreiras, e que nossos discursos sobre diversidade e liberdade são hipócritas e vazios, pois estamos selecionando quais experiências são válidas ou não e quais ajudam ou não com a militância.

Percebo que a rejeição/descrença aos xenogêneros gira em torno principalmente do fato de serem definidos por outras concepções que nada tem a ver com as qualidades mencionadas. Mas agora eu pergunto: por que é tão absurdo gêneros fora dessas concepções sendo que as qualidades conhecidas são subjetivas em si? Se as pessoas podem definir seus gêneros por essências que fazem sentido só para elas, o que impede a existência de gêneros baseados em sensações, emoções, elementos da natureza, etc?

Conheço algumas pessoas xeno e já tive contato com conteúdo feito por pessoas xeno. Isso vai soar mais como um apelo pro lado emocional, mas não tenho dúvida da existência de pessoas com essas identidades por causa do que passam. São pessoas bem marginalizadas, acabam se isolando por isso, não têm sentimento de pertencimento nem em espaços n-b, e muitas evitam revelar suas identidades. Por que pessoas aceitariam passar por todo esse sofrimento por assumir identidades "estranhas demais"? Isso aponta que assumir essas identidades pra si está muito além de uma mera opção, de um capricho, ou de querer algum destaque.

Onde esse monte de identidade "esquisita" ajuda na luta contra o cis-tema? Bom, toda identidade de gênero que não seja baseada em genitálias acrescenta nessa luta de alguma forma. Assim como ampliar nossas concepções de gênero e trazer à luz novas experiências, rompendo mais e mais com a ideia de que pessoas só vivem seus gêneros de acordo com estereótipos e construções sociais ou com ideias que ainda têm alguma base prévia (não há um consenso sobre o que é masculino e feminino, mas ainda existem diversas concepções sociais dessas qualidades).

E mesmo que haja identidades cunhadas por trolls, assim como palavras ofensivas (viado, sapatão, queer etc) foram ressignificadas, pessoas n-b também ressignificam essas identidades, afinal dentro da xeninidade tudo é possível e válido.

Pensando que as identidades xeno surgem da falta de palavras para descrever experiências, e que existe uma ideia de que gêneros só podem estar dentro de concepções humanas, acho necessário uma ampla reflexão e análise sobre possíveis ações capacitistas e racistas dentro do ódio e da intolerância aos xenogêneros; afinal muitos gêneros influenciados por neurodivergências (neurogêneros) são considerados xeno, e existem identidades de gênero restritas de culturas não-ocidentais definidas por questões espirituais.

Existe ainda um conteúdo extremamente escasso sobre esse tema aqui na Internet brasileira (talvez na lusófona mesmo). Por isso acabo relevando muitas reações negativas ao assunto. Acredito que seja uma questão de abordar e trazer discussões maiores sobre essas identidades. Espero que esse artigo ao menos ajude a refletir sobre essas possibilidades e preparar território para o tema.