Tenho que ser sempre o bonzinho. Tenho que ser o paciente, o tolerante, o pacifista, o racional, o resistente, aquele que releva, aquele que explica, aquele que sorri e deixa passar.
Estou numa civilização (acho que eu deveria ter colocado em aspas) que me aponta o dedo. Ri de mim, faz piada, me xinga pelas costas, me xinga pela frente, se puder até me joga algo na rua.
Mas eu aguento tudo isso. Afinal, sou o bonzinho.
A família vai me questionar, me vigiar, ou talvez ser indiferente, pois sou um caso perdido. O ciclo de amizades vai abaixar, isso faz parte. Vou sair e ser julgado de todas as formas onde quer que eu vá; as pessoas são assim, sempre foram.
Mas nem por isso vou gritar, rolar no chão, ou ter um ataque. Afinal, sou o bonzinho.
Tá bom, ninguém nasce sabendo. Nossa sociedade injeta preconceito nas crianças por todos os lados. Vou ouvir besteiras. Vou ver minha perspectiva sendo menosprezada. Meus relatos de vivência podem ser tratados com indiferença ou como vitimismo. E, ainda assim, tenho que dar tempo ao tempo, respirar fundo, e falar, discursar, para abrir a mente alheia.
E eu faço tudo isso porque sou bonzinho.
Meu amiguinho hétero-cis insistiu numa desinformação que eu, repetidas vezes, refutei. Sei do que estou falando! Eu tenho uma visão de vida diferente! Então me irrito e agora sou o radical, o agressivo, o que berra por pouca coisa.
Não consegui ser bonzinho dessa vez.
O amiguinho percebe seu erro e se desculpa comigo. Tudo bem. Está tudo bem! Tudo resolvido. Ele falou merda, refletiu, e admitiu seu erro. Missão cumprida, né?
Agora ele retoma sua vida repleta de privilégios e eu volto a ser o bonzinho. Eu e tantos outros por aí. Ele é sempre privilegiado. E eu, bem, tenho que ser o que devo ser: bonzinho. Bonzinho sempre, mesmo quando me batem ou até tentam me matar.
Até quando terei que ser o bonzinho? Às vezes cansa.