AC: exorsexismo, definições equivocadas, apagamento de identidades, validação academicista, ironia.
Estou escrevendo isso como uma análise a uma matéria lançada agora de manhã sobre pessoas não-binárias. Farei pontuações e comentarei as faltas dela.
Portanto recomendo que leiam essa matéria antes de prosseguir aqui, assim o artigo fará mais sentido: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47675093.
Já adianto que não achei a matéria ruim. Ela está boa em comparação a outras matérias sobre o assunto. Mas tem seus defeitos e esse blogue não existiria se fosse tudo perfeito.
Bem, mais uma vez perpetua-se a ideia de que pessoas não-binárias não são "nem homem nem mulher". Porque não existem pessoas que são desses gêneros, que fluem entre eles, que têm identidades relacionadas, né? Detalhe: só pessoas agênero ou sem uma identidade específica foram chamadas para as entrevistas. Hm...
Chamaram a primeira pessoa, que é agênero, de "indivíduo sem gênero definido". Sabe, não tem como você ter um gênero indefinido quando você não tem um gênero. Né?
"São pessoas que podem se sentir transitando entre os dois gêneros, sem necessariamente estar em um deles. São os indivíduos que resistem à normalização de gêneros. São pessoas cujos corpos denunciam uma resistência à imposição de normas". Uau, mais uma matéria sobre pessoas transgênero que botam uma pessoa cis da área da psiquiatria pra nos definir, e ainda de forma incompleta/equivocada. Incrível.
"A partir da década de 80, os estudos de gêneros passaram a abordar uma vertente que não incluía somente masculino ou feminino. Desde então, conforme especialistas consultados pela BBC News Brasil, surgiu o termo não-binários - também denominado por estudiosos como 'genderqueer'." Huh... o termo genderqueer não é propriedade de "estudiosos", tá? E não é apenas um sinônimo de não-bináries.
Bem, achei até positivo citarem a existência da neolinguagem. Porém, podiam ter explicado que existe uma linguagem universal e as linguagens pessoais, não? Não existe só o pronome elu e flexão com e. Resumir neolinguagem a "gênero neutro" é algo até esperável, mas ainda errado.
É importante falar sobre perguntar a linguagem da pessoa e respeitá-la. Só que existem pesos diferentes para pessoas que usam uma ou ambas as linguagens padrão e pessoas que usam neolinguagem. O fato da matéria tratar a única pessoa que usa pra si neolinguagem com a sintaxe neutra é uma evidência disso.
Eu até entendo por que ainda colocam esses detalhes. Mas seria tão bom ler uma matéria sobre pessoas trans/n-b sem menções a nomes mortos e gênero designado. E sem dar tanto foco a modificações corporais.
A parte de orientação sexual é bem ruim. "Entre os não-binários, assim como em casos de pessoas binárias", linguagem desumanizadora. Ninguém prestou atenção nisso?
Ok... como pessoas que "não são nem homem ou mulher" podem se identificar como hétero ou homo? Só pra constar, sim, existem gays e lésbiques não-bináries. Mas dentro do contexto da matéria isso não é nada explicado. E a identidade heterossexual não funciona para pessoas n-b. A psiquiatra falou uma coisa bem sem sentido.
Sério que ninguém parou um minuto pra se preocupar sobre a identidade sexual de pessoas n-b, sendo que as definições/ideias do senso comum de hétero, homo e bi são centradas em pessoas binárias?
"Alguns não-binários se definem como assexual - característica que, conforme estudiosos, também pode ser considerada uma orientação sexual." Assexualidade não precisa de "especialistas" pra ser validada, tá? E... precisava mesmo dizer que a pessoa "nunca beijou na boca"?
Poxa, falaram de uma pessoa n-b transmasculina e não usaram esse termo. Perderam a oportunidade de falar de pessoas n-b transmasculinas e transfemininas.
"Tal característica, conforme especialistas no tema, não altera o fato de o indivíduo considerar que não pertence ao gênero masculino ou ao feminino." Precisou de especialistas pra afirmar isso? A palavra das próprias pessoas n-b não era suficiente? Já não é sabido que expressão de gênero e identidade de gênero são coisas distintas?
Pessoas não-binárias passam por muita coisa. Inclusive serem exotificadas em matérias sobre o tema feitas por pessoas cis que usam seus próprios parâmetros, mesmo quando não incluem o próprio grupo foco da matéria. Hm, onde vi isso?
Por fim, a psiquiatra frisa que pessoas n-b precisam ser vistas com base em estudos do tema. Hm, estudos com as vivências e que usem as terminologias dessas pessoas? Só assim para serem estudos de qualidade. Ah, e não é necessário estudos para validar o grupo, só ressaltando.
Então... que bom que existem espaços nos dando alguma voz ou visibilidade. Mas até quando seremos só criaturas exóticas dignas de uma matéria que fala em seus próprios termos, e não nos termos do grupo que ela se propõe a mostrar?
Assim como os tais estudos acadêmicos, me parece que somos só teoria, não somos as referências. Essa necessidade de botar "especialistas" nessas matérias me parece só uma forma de nos validar, porque só nossas vivências e palavras não bastam.
Mencionaram a neolinguagem, deram exemplos, mas optaram em usar a sintaxe neutra pra se referir a única pessoa da entrevista que usa pronome elu e flexão com e. Fazem uma matéria sobre pessoas que "não são homem ou mulher" e não podem usar devidamente a linguagem de uma pessoa que não usa as duas linguagens associadas aos gêneros binários?
Enfim, é isso que tenho a dizer sobre a matéria.