30 de out. de 2016

A casa espiritual que frequentei

Há quem acredite que casas de trabalhos espirituais são mais receptivas com LGBTs. Acreditei nisso durante muito tempo.

Minha ex-psicóloga e falecida amiga trabalhava numa casa espiritual. Eu sabia disso desde que passei nas consultas dela. Ela me convidou para receber tratamento espiritual e aceitei. Alguns meses depois, fui chamado para trabalhar lá, para assim poder desenvolver minha mediunidade.

Quando me tornei missionário, fiquei maravilhado com o local. Fiquei fascinado com a novidade, as pessoas, as entidades que ali atendiam, e os ensinamentos. A doutrina da casa combinava a Cabala com Umbanda.

Na época eu nem era militante LGBT, ainda me escondia.

Bom, a primeira coisa que achei estranha era homens não poderem incorporar entidades femininas. Diziam que dava um “choque de energia” e o homem ficava afeminado. Outros diziam que ele “virava gay”. Até agora nem sei se acredito mesmo nisso. Mesmo assim aceitei, não quis discutir.

A segunda coisa que percebi com o tempo, e que me incomodava, era que quando falavam de amor entre casais se referiam apenas aos casais héteros. Era como se homossexuais nem existissem. Para vocês terem uma ideia; casal lá era sempre homem e mulher. A linguagem heteronormativa daquela gente me incomodava, e meu incômodo só aumentou com o passar dos anos.

A terceira coisa que me irritou bastante foi nos e-mails escritos pela fundadora da casa. Em apenas dois e-mails vi alguma menção a homossexuais. Além de escrever “homossexualismo”, era sempre num contexto negativo. A prática é “espiritualmente negativa”.

Pouquíssimas vezes ouvi comentários alheios sobre homossexuais. E todos mostravam o conservadorismo e preconceito dos missionários. Mas essas coisas não incluo como defeitos da casa em si.

Minha amiga me apoiava, embora parecesse relevar essas coisas. Hoje a compreendo, mas não a desculpo.

No ano de 2015 teve dois eventos, novamente relacionados com a fundadora, que para mim, como LGBT, foram grandes motivos que me fizeram querer sair daquele lugar:

1- Em janeiro, essa senhora, fingindo que estava incorporada (no caso ela diz incorporar um espírito evoluído) decidiu falar de homossexuais. Se bem me lembro, o beijo gay numa novela estava gerando polêmica. Ela abordou o tema. Começou dizendo que era um karma que vinha de berço. Ao menos apontou um fato; nascemos assim. Porém, logo em seguida veio um show de ódio e mentiras. Disse que homossexuais foram infiéis em vidas passadas, que têm uma vida cheia de conflitos e que não são felizes “como a novela mostra”, que não existe mulher que larga o marido para ficar com outra mulher, até pediu para as famílias não deixarem crianças verem “isso”, e que podemos mudar fazendo a desobsessão (o ritual principal da casa, que afastava espíritos malignos).

Vamos analisar o discurso problemático dessa senhora tão medieval:

- Afinal, homossexualidade é mesmo um karma? Discuti isso aqui recentemente.

- Se infidelidade faz a pessoa nascer homossexual na próxima vida, então muita gente daquele lugar terá esse destino. Fiquei sabendo de cada caso de traição, cês nem têm ideia #polêmica.

- Homossexuais têm mesmo uma vida cheia de conflitos, e mesmo assim lutam e enfrentam. Conflitos causados por uma sociedade repleta de gente reacionária, como essa senhora. 

- Não existe mulher que larga o marido pra ficar com outra? Em que mundo ela vive? Quase ri quando ouvi isso.

- Hello, século 21! Nenhuma criança ficará traumatizada com um beijo gay. Parem de dizer isso, não faz nenhum sentido.

- Primeiro ela fala que nascemos homossexuais e logo em seguida fala que podemos “mudar” tirando espíritos obsessores? Homossexualidade é influência de obsessor? Afinal, é natural ou é influência espiritual? Contraditório isso. Mas tudo bem, essa senhora sempre foi contraditória.

Meus parabéns a "Dona Mestra" por ter espalhado mais preconceito e desinformação, é disso que o mundo precisa! Tenho convicção de que foi ela falou essas coisas, e não um espírito evoluído. Jamais um espírito iluminado faria um discurso de ódio como esse.

2- Em julho, o casamento igualitário foi aprovado em todos os estados dos EUA. Muita gente comemorou e celebrou. Houve pessoas da casa que devem ter se pronunciado contra, pois vi uma missionária postar algo no grupo oficial dos missionários, dizendo que “estava triste com o pensamento fechado de muitos de lá”.

Nossa digníssima senhora atacou mais uma vez. Fez um texto a respeito, falando uma história sem sentido que o casamento igualitário surgiu porque algumas patroas queriam deixar herança para as empregadas. Tipo, wtf?

Ela se dizia "indiferente", e falava que todos deveriam ser assim também. Ela é indiferente, mas o discurso é de contra. Falei que ela é muito contraditória. E só pra constar, se você é indiferente com um grupo de pessoas que sofrem violência todo dia por serem o que são, você está a favor da opressão. Aqui não existe “neutro”.

E, para finalizar, naquele mesmo dia ela e o marido (tão reacionário quanto ela) compartilharam aquele famoso trecho de levítico contra a prática homossexual. Mas vem cá, lá eles aplicavam Cabala, então seguiam a Torah. Afinal, ela segue a Bíblia ou a Torah? Justo naquele dia em que o amor venceu ela decidiu mais uma vez espalhar o ódio. Essa é a comandante do grupo espiritual que “vai abrir a Nova Era” (sim, são prepotentes assim).

Isso tudo poderia ter acontecido numa igreja evangélica. Mas não, foi numa casa espiritual. Ao invés de pregar a tolerância e aceitar a diversidade do mundo, preferem ser medievais, mascarados como “guerreiros da luz”. Sinto pena dos LGBTs que ainda estão naquele lugar. Ainda devem estar iludidos e ainda devem achar que somente lá podem cumprir a tal missão espiritual.

Tentei por muito tempo compreender minha amiga, mesmo após sua morte. E compreendi que ela, assim como muita gente que ainda trabalha lá (ou já trabalhou), estava iludida com o lugar. Provavelmente ela achava que apenas lá ela tinha uma base. Entendo o lado dela, entendo a razão de ela ter relevado tanta coisa errada e até a tirania do pessoal que administra a casa. Tenho pena dela por isso.

Em respeito a ela e em respeito às entidades espirituais que fazem a caridade de trabalhar lá, eu havia decidido não denunciar publicamente a casa espiritual. No entanto, pensei melhor e o máximo que farei é esse texto. Não sei se ele fará alguma diferença. Não sei se ele chegará ao conhecimento da casa. Prefiro deixar essas coisas no mundo das probabilidades. Mas deixo aqui minha imensa insatisfação com esse lugar, que tenho certeza que irá cair eventualmente.

A única coisa de que não posso reclamar é que ninguém teve a audácia de vir falar alguma merda pra mim durante esses cinco anos que trabalhei lá. Contudo, o discurso intolerante daquela gente alimenta a violência contra LGBTs. Prometi para mim mesmo que essa seria a última vez que eu deixaria o preconceito passar impune.

Parabéns a vocês dessa casa pelo desserviço à humanidade!
Quero ver vocês mudarem o mundo com preconceito!
Haja Luz!