26 de mar. de 2019

Sobre a matéria da BBC

AC: exorsexismo, definições equivocadas, apagamento de identidades, validação academicista, ironia.



Estou escrevendo isso como uma análise a uma matéria lançada agora de manhã sobre pessoas não-binárias. Farei pontuações e comentarei as faltas dela.

Portanto recomendo que leiam essa matéria antes de prosseguir aqui, assim o artigo fará mais sentido: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47675093.

Já adianto que não achei a matéria ruim. Ela está boa em comparação a outras matérias sobre o assunto. Mas tem seus defeitos e esse blogue não existiria se fosse tudo perfeito.

Bem, mais uma vez perpetua-se a ideia de que pessoas não-binárias não são "nem homem nem mulher". Porque não existem pessoas que são desses gêneros, que fluem entre eles, que têm identidades relacionadas, né? Detalhe: só pessoas agênero ou sem uma identidade específica foram chamadas para as entrevistas. Hm...

Chamaram a primeira pessoa, que é agênero, de "indivíduo sem gênero definido". Sabe, não tem como você ter um gênero indefinido quando você não tem um gênero. Né?

"São pessoas que podem se sentir transitando entre os dois gêneros, sem necessariamente estar em um deles. São os indivíduos que resistem à normalização de gêneros. São pessoas cujos corpos denunciam uma resistência à imposição de normas". Uau, mais uma matéria sobre pessoas transgênero que botam uma pessoa cis da área da psiquiatria pra nos definir, e ainda de forma incompleta/equivocada. Incrível.

"A partir da década de 80, os estudos de gêneros passaram a abordar uma vertente que não incluía somente masculino ou feminino. Desde então, conforme especialistas consultados pela BBC News Brasil, surgiu o termo não-binários - também denominado por estudiosos como 'genderqueer'." Huh... o termo genderqueer não é propriedade de "estudiosos", tá? E não é apenas um sinônimo de não-bináries.

Bem, achei até positivo citarem a existência da neolinguagem. Porém, podiam ter explicado que existe uma linguagem universal e as linguagens pessoais, não? Não existe só o pronome elu e flexão com e. Resumir neolinguagem a "gênero neutro" é algo até esperável, mas ainda errado.

É importante falar sobre perguntar a linguagem da pessoa e respeitá-la. Só que existem pesos diferentes para pessoas que usam uma ou ambas as linguagens padrão e pessoas que usam neolinguagem. O fato da matéria tratar a única pessoa que usa pra si neolinguagem com a sintaxe neutra é uma evidência disso.

Eu até entendo por que ainda colocam esses detalhes. Mas seria tão bom ler uma matéria sobre pessoas trans/n-b sem menções a nomes mortos e gênero designado. E sem dar tanto foco a modificações corporais.

A parte de orientação sexual é bem ruim. "Entre os não-binários, assim como em casos de pessoas binárias", linguagem desumanizadora. Ninguém prestou atenção nisso? 

Ok... como pessoas que "não são nem homem ou mulher" podem se identificar como hétero ou homo? Só pra constar, sim, existem gays e lésbiques não-bináries. Mas dentro do contexto da matéria isso não é nada explicado. E a identidade heterossexual não funciona para pessoas n-b. A psiquiatra falou uma coisa bem sem sentido.

Sério que ninguém parou um minuto pra se preocupar sobre a identidade sexual de pessoas n-b, sendo que as definições/ideias do senso comum de hétero, homo e bi são centradas em pessoas binárias?

"Alguns não-binários se definem como assexual - característica que, conforme estudiosos, também pode ser considerada uma orientação sexual." Assexualidade não precisa de "especialistas" pra ser validada, tá? E... precisava mesmo dizer que a pessoa "nunca beijou na boca"?

Poxa, falaram de uma pessoa n-b transmasculina e não usaram esse termo. Perderam a oportunidade de falar de pessoas n-b transmasculinas e transfemininas.

"Tal característica, conforme especialistas no tema, não altera o fato de o indivíduo considerar que não pertence ao gênero masculino ou ao feminino." Precisou de especialistas pra afirmar isso? A palavra das próprias pessoas n-b não era suficiente? Já não é sabido que expressão de gênero e identidade de gênero são coisas distintas?

Pessoas não-binárias passam por muita coisa. Inclusive serem exotificadas em matérias sobre o tema feitas por pessoas cis que usam seus próprios parâmetros, mesmo quando não incluem o próprio grupo foco da matéria. Hm, onde vi isso?

Por fim, a psiquiatra frisa que pessoas n-b precisam ser vistas com base em estudos do tema. Hm, estudos com as vivências e que usem as terminologias dessas pessoas? Só assim para serem estudos de qualidade. Ah, e não é necessário estudos para validar o grupo, só ressaltando.

Então... que bom que existem espaços nos dando alguma voz ou visibilidade. Mas até quando seremos só criaturas exóticas dignas de uma matéria que fala em seus próprios termos, e não nos termos do grupo que ela se propõe a mostrar?

Assim como os tais estudos acadêmicos, me parece que somos só teoria, não somos as referências. Essa necessidade de botar "especialistas" nessas matérias me parece só uma forma de nos validar, porque só nossas vivências e palavras não bastam.

Mencionaram a neolinguagem, deram exemplos, mas optaram em usar a sintaxe neutra pra se referir a única pessoa da entrevista que usa pronome elu e flexão com e. Fazem uma matéria sobre pessoas que "não são homem ou mulher" e não podem usar devidamente a linguagem de uma pessoa que não usa as duas linguagens associadas aos gêneros binários?

Enfim, é isso que tenho a dizer sobre a matéria.

23 de mar. de 2019

Pausa

Bem, acho que essa foi a pausa mais longa que fiz em todos esses anos, mas voltamos. E quando digo nós quero dizer só eu mesmo rs.

E nem vim escrever algo importante, apenas dizer que o blogue não acabou não. Foram mais de quatro anos escrevendo dois artigos toda semana. Precisei de uma pausa.

Estive refletindo sobre muita coisa, fazendo uns outros projetos, e colhendo assuntos interessantes (e polêmicos) pra adicionar nesse espaçosinho que nem pensei que marcaria minha vida.

Para quem tiver interesse, escrevi esses dias o Manual sobre a linguagem de pessoas não-binárias em mídias traduzidas, que, pra minha surpresa, se espalhou muito no Twitter.

É isso.

6 de mar. de 2019

Carnaval 2019

AC: moralismo, menção a práticas sexuais e urina, política, heterossexismo.



Sinceramente, eu odeio carnaval. Não escondo isso. Não gosto pelos mesmos motivos de não gostar de baladas e as altas festas da noite.

Até hoje vejo pessoas reclamando do evento. E até hoje são as mesmas reclamações bestas e controversas de gente moralista que enxerga o mundo pelo próprio umbigo.

Jamais aprovaria que proibissem o carnaval. É uma época necessária! As pessoas liberam geral, tem recesso, e traz dinheiro pelo turismo. Que bom que existe! E desejo sim que as pessoas curtam. Mas que curtam com responsabilidade.

Vamos às reclamações mais comuns. Roubos? Bom, roubo vai acontecer sempre em toda aglomeração, isso inclui espaços como metrô e ônibus. Gente bêbada e se drogando? Isso não é problema do evento e são questões bem mais complexas. Lixo no chão e depredação do espaço público? Falta de civilidade da população, que está aí todo dia do ano e é um problema educacional.

Ah, tem as putarias ao ar livre. Pois bem. Vamos falar nelas então.

Antes de tudo, por hoje vou me abster de opinar sobre práticas sexuais em espaço público. O que eu acho cômico nisso tudo é que as práticas feitas entre pessoas dissidentes são sempre as que mais geram repercussão. E foi o que aconteceu ontem.

O fascista eleito postou na sua conta do Twitter um vídeo de uma pessoa dedando o ânus e depois outra pessoa urinando na cabeça dela, sugerindo que aquela cena resume todo o carnaval e dizendo aes sues seguidories que "comentassem e tirassem suas próprias conclusões".

Isso é um ataque descarado à comunidade LGBT+ e ao carnaval. Ele tentou numa tacada só demonizar as duas coisas fazendo o que sempre faz: incitar ódio coberto de hipocrisia e moralismo.

Podem dizer o que quiser das duas pessoas do vídeo, mas assim, com ou sem cena polêmica ao ar livre, nossa comunidade será sempre alvo de crítica e ódio. Não adianta jogar culpa naquelas duas pessoas. E nada justifica um presidente expô-las e ainda propagando ódio. Se for pra escolher um lado, escolho o delas sim!

Há especialistas em direito dizendo que esse ato pode ser motivo para um pedido de impeachment. Bom, se todo discurso de ódio já feito e o fato de estarmos quase entrando numa guerra não foram suficientes, duvido que isso será motivo. Mas espero que ele seja punido sim de alguma forma.

Vi muitas pessoas da comunidade reclamando da presença de "héteros" em blocos LGBT(+). Bem, eu gostaria de saber quais são os critérios usados pra presumir que a pessoa seja hétero. Mas, em todo caso, compreendo o incômodo dessa situação. Pessoas dissidentes muitas vezes querem um espaço seguro sem a presença de pessoas potencialmente opressoras. E o fato dos grupos privilegiados não entenderem isso precisa de atenção (não duvido que haja gente querendo "sabotar" esses espaços).

Acho que posso dizer que tivemos um carnaval bem polêmico por causa do cenário político atual. Mas teve muita coisa positiva. Não apenas os desfiles repletos de crítica social e representação, como também mais uma vez mostramos ao mundo o presidente deplorável que temos. Sim, acho que valeu a pena.



2 de mar. de 2019

Divulgação: Colorides e Ajuda NHINCQ+

Temos uma carência enorme de espaços seguros e inclusivos e sites para atender a dúvidas e perguntas de pessoas de toda a comunidade. Por isso mesmo vim hoje divulgar o espaço Colorides e o blogue Ajuda NHINCQ+; lugares onde também estou presente e atuando.



O site Mastodon é uma rede social alternativa parecida com Twitter. Nele existem as instâncias, que são como comunidades virtuais administradas por uma equipe. Elas podem ter suas próprias regras e o site tem recursos como avisos de conteúdo.

Colorides foi criada para a comunidade LGBTQIAPN+ brasileira, mas toda pessoa interessada na temática pode participar.

Aqui tem informações completas sobre a instância e como ela funciona (recomendo que leiam!): http://sobre.colorid.es

Aqui está o link para ir direto ao site e se cadastrar: http://colorid.es

(Descrição de imagem: um fundo de universo com estrelas coloridas e o nome da instância escrito em letras coloridas e grandes.)



O blogue Ajuda NHINCQ+ foi criado para lidar com questões envolvendo a comunidade e toda diversidade relacionada. Lá temos uma equipe empenhada em responder qualquer pergunta e também promover discussões pertinentes ao tema. 

Sintam-se à vontade para perguntar ou abrir discussões, seja anonimamente ou não.

Link: https://ajudanhincq.wordpress.com

(Descrição de imagem: a bandeira NHINCQ+; um pentágono laranja num fundo azul claro.)