19 de set. de 2017

"Cura gay"

Eu não queria comentar sobre isso, mas vi necessidade principalmente por causa do tipo de repercussão que a notícia está tendo. E preciso fazer umas pontuações necessárias.

Ontem estava eu na TL do Facebook e me deparo com a seguinte notícia: “Justiça permite tratar homossexualidade como doença”. Em seguida vi que era notícia da Veja. Respirei fundo e abri a notícia.

Comecei a ler. Na primeira leitura, fiquei enojado com o absurdo retrocesso desse país. Mas ainda assim li mais uma vez. Fiz uma breve pesquisa. Refleti sobre o assunto e comentei de forma resumida no Twitter.

Estou escrevendo esse texto para esclarecer toda essa polêmica, visto que há pessoas que nem leram a notícia e outras que nem estão entendendo o que está acontecendo. E também para apresentar outras perspectivas pertinentes sobre esse caso.

A resolução de 1999 editada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) passou a proibir que profissionais de Psicologia realizassem terapia de “reversão sexual” ou de reorientação – ou seja, mudar a orientação sexual do indivíduo. Mesmo que a pessoa exija, não é permitido. O mais correto e humano é encaminhar a pessoa para que aceite sua sexualidade. E vale lembrar que até hoje ninguém conseguiu mudar de orientação sexual, seja por vontade própria (não, não existe ex-gay) ou por métodos terapêuticos (sendo que vários foram empregados de maneira antiética e causaram transtornos mentais e suicídios).

Essa resolução foi feita em virtude da OMS ter retirado em 1990 a homossexualidade (não é mais homossexualismo, tá?) dos catálogos de transtornos mentais.

Alguns "profissionais" da área tiveram seu registro cassado por promoverem a tal "reversão sexual". E, claro, todos motivados por religião. Dessa vez, uma fanática cassada, apoiada por outros da mesma laia, entrou com uma ação judicial contra a resolução.

Um juiz de DF acatou e entrou com uma liminar, que é um pedido específico dentro de uma ação. Ele não anulou a decisão da OMS e nem a resolução de 1999. Ele está tentando abrir uma concessão dentro da resolução. Ou seja, homossexualidade não voltou a ser classificada como transtorno, nem a nível nacional. Ressalto isso porque vi gente interpretando assim.

Mas ainda assim, essa liminar é definitivamente um gigantesco retrocesso sem precedentes e uma atitude que reflete a homofobia internalizada no âmbito jurídico e o avanço do fanatismo religioso. Estão novamente tentando patologizar a homossexualidade (consequentemente todas as orientações que não são hétero)!

Com essa liminar, gays e lésbicas podem ser tratados como doentes e podem ser atendidos, por escolha própria, por psicólogos para tentar mudar sua orientação sexual. Na psicologia existe um termo chamado “orientação sexual egodistônica”, que é a condição em que um indivíduo deseja mudar sua orientação por ela lhe causar algum sofrimento. Então essa liminar, até onde pude entender, serve a princípio para as pessoas egodistônicas.

No entanto, e como já foi falado, está mais do que comprovado (e isso porque homossexuais foram cobaias por muitos anos) que não é possível mudar a orientação sexual de alguém. A egodistonia tem uma única causa: o preconceito. A homofobia é uma opressão estrutural, ou seja, ela está na sociedade em todos os âmbitos. Ela é a causa do sofrimento e das estatísticas de violência e morte contra homossexuais. Infelizmente parece que é mais fácil quererem tratar uma sexualidade do que uma discriminação.

E aliás, falei de pessoas egodistônicas maiores de idade! Essa mesma liminar abre uma brecha perigosa para famílias religiosas e conservadores quererem "internar" crianças a adolescentes LGBTs (como se não bastasse as igrejas por aí que ainda tentam converter as pessoas).

Independentemente da idade, essa decisão poderá abrir portas para experimentações antiéticas e torturas psicológicas. Se mesmo com a resolução do CFP ainda ocorrem casos de tentativa de reorientação, então a situação pode piorar. Resoluções e leis mal são cumpridas nesse país.

E tendo em vista o conhecimento precário de muitos profissionais da própria área sobre sexualidade e gênero, essa liminar com certeza pode atingir também bissexuais e transexuais e travestis. Afinal, na mentalidade da população geral, bissexual é “meio-homossexual” e transexuais e travestis são uma evolução dos gays.

Outro ponto importante e que é raramente discutido é como estamos usando a palavra homofobia. Na prática, a população geral acaba usando homofobia para discriminação de pessoas LGBTs. Está errado, visto que as opressões vivenciadas por homossexuais, bissexuais e pessoas trans são distintas. Mas nem é disso que vou falar. Ontem no Twitter milhares de pessoas utilizaram em repúdio a liminar a tag #HomofobiaÉDoença. Até eu participei disso. E depois percebi meu erro. Homofobia é um preconceito que pode se tornar crime de ódio. Ela é uma opressão estruturada na sociedade, e afirmá-la como uma “doença mental” reforça mais os estigmas contra a parte da população que é portadora de transtornos e doenças mentais. Por favor, evitem fazer essa afirmação!

Sobre todas as pessoas se manifestando, fico imensamente feliz com isso. Agora devo também cobrar: onde está toda essa união para retirar a transexualidade do CID (Código Internacional de Doenças)? E sabiam que a bissexualidade – mesmo não sendo considerada, em si, um transtorno – aparece como “sintoma” de alguns transtornos? Linda essa revolta contra um retrocesso que atinge (primariamente) gays e lésbicas cisgêneros. Mas as outras letrinhas da sigla LGBT estão precisando de ajuda também.

Concluindo, a liminar foi feita por apenas um juiz (nem é formado em psicologia!) e o CFP em conjunto com organizações pró-LGBT irão recorrer contra isso. Projetos de “cura gay” já foram derrubados e espero que dessa vez não seja diferente.

Toda essa polêmica reforça o quanto precisamos falar da homofobia estrutural e tomarmos cuidado para o rumo que nosso país está tomando, que até então tem sido retrocesso atrás de retrocesso. A comunidade LGBTQIAP+ continua sendo ameaçada! Precisamos parar de ficar fazendo meme e lutar!